Brasileiros no Teto do Tio Sam

Brasileiros no Teto do Tio Sam

 

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Take One Mount Whitney Texto: Eliseu Frechou
esq_01halfdomeInício da peregrinação ao Half Dome (11km de piramba).Paredão do Half Dome.Eliseu e Guinho na terceira enfiada da Northwest Regular.
Na minha opinião, viajar é algo tão inerente ao esporte de escalar quanto a própria atividade em si.
É quando podemos ampliar nossos horizontes e testarmos nossos conhecimentos, técnica e coragem em terrenos diferentes do nosso quintal.
Fome, sede, calor, frio, cansaço, desconforto, saudade de casa são situações tão presentes numa trip de escalada quanto estar em lugares maravilhosos que poucos têm chance de conhecer.Assim, você acaba tendo a certeza que estas viagens são experiências sensitivas que acabam nos forjando como montanhista e ser humano, reafirmando que a escalada não é apenas um esporte e também uma atividade transcendental.Tão marcante quanto as paredes imponentes, quem já esteve na Sierra Nevada na Califórnia não esquecerá para o resto da vida o perfume das florestas de pinheiros que predominam nesta região de clima ameno da Califórnia. O olfato com certeza o fará lembrar deste lugar tantas ou mais vezes quanto as lembranças das suas aventuras nos gigantes de pedra.Quando estive no Yosemite Valley pela primeira vez em 94, achei que não iria voltar nunca mais. É tudo tão longe, caro, difícil para nós brasileiros. Para minha felicidade consegui retornar 7 vezes, e neste ano mais uma vez, com os amigos Wagner “Guinho” Pahl e Fábio Saboya, que em datas diferentes, pudemos curtir algumas das escaladas mais alucinantes de Yosemite, Tuolumne Meadows e Mount Whitney.central_05yo
No início da segunda quinzena de outubro de 2006…
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Guinho na Bishop’s terrace. El Capitan visto da base do The Nose.Guinho na primeira enfiada da Zodiac.
… partimos Guinho e eu para a a Califórnia com a intenção de escalarmos o Half Dome, um dos maiores símbolos do montanhismo americano, e uma das paredes mais bonitas que eu já escalei. Para quem vai do Brasil, o caminho mais fácil é por San Francisco. Yosemite está do lado oeste da Sierra Nevada, a apenas 5 horas de San Francisco, nosso portal de entrada nos EUA pela rota 120. Esta é uma cidade muito bacana, e a melhor maneira de conhecê-la é a pé. Nos dias de rolê, deixamos o carro no estacionamento e de mochila nas costas partimos para caminhadas de 10 horas non-stop pelas ruas. Em San Francisco alugamos um carro, fizemos as compras de equipamentos e rango, e partimos o mais abastecidos possível para o Vale. Logo no segundo dia, iniciamos a caminhada de 11km para o Half Dome carregados com vários quilos de equipamentos, rango a água para escalar a Northwest Regular em dois dias. Um esforço que foi frustrante, pois assim que chegamos, nos deparamos com 2 cordadas prestes a entrar no via e diversas outras na parede acima de nós, jogando pedra ou rapelando, criando assim uma atmosfera um tanto quanto perigosa.central_05yofloresta
Fazendo de conta que estava tudo bem, subimos 3 enfiadas…
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Segunda tentativa (e acerto) na chegar na base do Whitney. Piramba, só pra variar e não amolecer as pernas.Guinho no bivaque do Iceberg Lake e com nossa água congelada pela manhã.Whitney ao amanhecer.
Guinho no bivaque abaixo da montanha.
… e bivacamos num platô bem apertado, onde nos revezamos no único lugar onde dava para deitar. Ainda de noite, uma cordada que havíamos ajudado, fixando 3 cordas em troca deles deixar-nos passar à frente, nos acorda e passa a frente. O dia, assim como a noite anterior parece bem nublada. Mais umas pedrinhas na cabeça nos fazem repensar a desistir da parede, evitando o risco desnecessário causado pelo tráfego. central_03Optamos então por seguir para o Mount Whitney, o ponto mais alto dos EUA continental (fora o Alaska), que pelo que soubemos, não havia tido nenhuma ascensão por equipes brasileiras no East Butress. As informações sobre a rota a faziam altamente recomendável. A promessa de um lugar parecido com a Patagônia, com quase nenhuma vegetação, granito cinza claro, morainas, lagos, geleiras e quase 4.500m de altitude, nos botou a pilha pra partir o mais rápido possível para o outro lado (leste) da Sierra. Passamos rápido por Tuolumne Meadows e pernoitamos já no Inyo National Park, não antes de é lógico, pegar o wilderness permit, exigido para escalar o Whitney, e mesmo caminhar após a entrada no parque. A estratégia era caminharmos até a base da montanha, numa trilha que consumiria segundo informações, um dia inteiro, bivacarmos na base da rota e no dia seguinte, escalar a parede, descer por uma rota de caminhada e voltar para a sede do parque. Para esta estratégia dar certo e não ficarmos um dia a mais naquela altitude e na friaca, teríamos que ser rápidos. Isso significava que também teríamos que estar leves na caminhada, para não nos cansarmos e podermos guardar o gás para a escalada. Escolhemos então deixar no carro, a barraca e o fogareiro. Levamos apenas 4 layers (roupa sintética de diversas camadas que funcionam tanto para manter o escalador seco como quente) que consistia de X-sensor, X-thermo, fleece fino, um polartec 200 e anoraque, sacos de dormir e bivaque. O equipamento de escalada também teve seus cortes, apenas 1 jogo e meio de friends, algumas nuts e alguns tcu’s. Uma única corda nos deixava sem possibilidade de descida… então, teríamos que chegar ao topo para descer pelo corredor a direita da montanha. Roubada só pra variar.
No primeiro dia, seguindo as informações que conseguimos com os locais…
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Eliseu guiando a sexta e oitava enfiadas “the pee wee
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Na décima enfiada, o headwall da parede
… da cantina do parque, seguimos por uma trilha errada, que levava ao Whitney sim, mas via caminhada até o topo! Nos ferramos bonito, além de perdermos um dia inteiro camelando feito sherpas. Xingamos pacas, mas felizmente encontramos uns figuras que conheciam e nos mostraram a estrada do north fork, onde começa a Mountainner’s route. Voltamos para a sede do Parque, jantamos bem e no dia seguinte, estávamos novamente na trilha às 8 da manhã. Perrengue de quase 7 horas de “toca pra cima”, só pra variar e chegamos sem maiores problemas que a falta de ar no Iceberg lake, ponto onde deveríamos montar o bivaque. O lugar parece uma pinguineira, cheia de amontoados de pedra formando barreiras contra o vento. Guinho dá uma descansada enquanto eu dou um rolê pelo lugar e acho o início da rota. Antes do anoitecer arrumamos o equipamento de escalada e comemos um ravioli enlatado a frio mesmo (intragável!). Conforme vai escurecendo vai gelando e temos um bivaque glacial, a vários graus negativos. A noite é um espetáculo. Pelo buraco de respiração do meu saco de bivaque fico contando satélites e estrelas cadentes sem parar. O Guinho também fica espantado com a clareza do céu e passa boa parte da noite curtindo o visual. Pela manhã falta coragem pra sair do saco de dormir, que mesmo com gelo por dentro, ainda é mais quente que a temperatura externa. A água que havíamos preparado para a escalada estava congelada nas garrafas e o gelo estava por todas as partes. Com o nascer do sol, a pressa por fazer a escalada toma conta de nós e começamos a subir a moraina em direção à montanha. A primeira enfiada é tranqüila, a proteção é boa e nos deixa confiantes em fazer as 11 enfiadas num bom tempo. Nossa idéia era alcançar o topo e ainda descer no mesmo dia, então ligamos o turbo e conseguimos realizar cada enfiada de 60 metros num tempo inferior a 30 minutos.
Entre uma parada e outra, tiramos uns minutos para filmar e fotografar…
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Eliseu na quinta parada e conjunto do Whitney ao anoitecer
… mas,não só nossa pressa, mas também o frio, nos lembra que precisamos nos manter em movimento. A medida que subimos, entramos na aresta da montanha, onde é mais frio por conta do vento. O lugar é uma espécie de “fendolândia” como diria um amigo nosso de Itatiaia e por diversas vezes encontramos várias fendas paralelas o que até dificultava a orientação. Isso, mais o fato da inexistência de grampos, e apenas um piton em 600m de parede, deixa uma enorme responsabilidade ao guia, que deve ter um bom senso de direção para não se perder na parede, entrando numa ratoeira sem saída. Outro contratempo para a dupla tupiniquim foi o ar frio que aliado aos quase 4.500m de altitude dificultavam a respiração e por diversas vezes tivemos que parar de escalar por uns instantes e respirar mais forte para recuperar o fôlego. 
Chegamos ao meio da montanha às 10:30hs…
Guinho e eu havíamos combinado que este seria o ponto de parada para uma barra energética, água, filmar as considerações. Quinze minutos de descanso e vamos tocando, fazendo as paradas nos melhores platôs e seguindo nosso caminho a nossa maneira, sem deixar rastros, um dos prazeres da escalada tradicional.
Algumas incertezas e decisões felizmente acertadas…
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Having fun ! 
… e às 13 horas chegamos ao topo. Fotografias, papo com uma galera que estava no cume via trilha e descemos o perigoso corredor cheio de pedras soltas que termina no local de bivaque. Às 15 horas saímos carregados com os equipos extras e antes do pôr-do-sol estávamos no carro. Na volta para San Francisco, ainda tivemos tempo de fazer um “lazer” de dois dias no Vale de Yosemite. Fizemos algumas vias em livre e por fim,  Guinho resolveu que queria guiar a primeira enfiada da Zodiac. Um dia de tour por San Francisco e Guinho parte pro Brasil. Eu ainda permaneço um dia em San Francisco antes da chegada do Saboya e retorno à Yosemite.  

Take Two Yosemite Texto: Fábio Saboya

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Saboya no Swan Slabs.Eliseu na Nutcracker o Manure Pile.Saboya guiando After Six no Manure Pile.
– Será que esse é o cara? o Eliseu perguntou.O velhinho na nossa frente, conversando com turistas, era mesmo “o cara”: Tom Frost, um dos conquistadores do El Capitan em 1964. Afinal, estávamos “no lugar”: Yosemite é o centro sagrado para onde todo escalador sonha peregrinar ao menos uma vez na vida. Aliás, era disso que o Tom estava falando. ” Naquela época nós queríamos conhecer o Nepal, a Cordilheira Blanca, Alpes, a Patagônia. Só depois a gente entendeu que já vivia num dos melhores points de escalada do mundo”. Talvez o melhor. A começar pela gigantesca concentração de granito por quilometro quadrado, que tanto impressiona à primeira vista – e mais ainda depois de alguns dias, quando você começa a perceber pontinhos subindo aos poucos nos enormes paredões. Só aí você  entende a dimensão daquilo, de 5 ou 6 vezes a nossa Pedra do Baú.  
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Saboya no Central Pillar of Frenzy na Middle Catedral de Yosemite e nos Bachar boulders de Mammoth Lake (deserto da Califórnia).
Se Deus é brasileiro, não deve ser escalador. Senão teria trazido para cá pelo menos umazinha daquelas paredes. Ou teria distribuído por aqui aquelas fendas incríveis, que te obrigam aos entalamentos e oposições mais inesperados. Escalada de frente, como a gente está acostumado no Brasil, tem pouca. A rocha é lisa, quase sem agarras. Até você pegar o jeito, o grau da via é uma indicação não muito confiável da dificuldade. Falando em confiança, a qualidade das proteções varia muito.Tudo móvel, claro, às vezes te obrigando a longos esticões durante os quais é melhor não pensar muito. A lei não escrita é “nunca deixe nada na rocha” e vem sendo seguida com poucas exceções – sem contar as cicatrizes de pitons nas vias mais antigas.  
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West Country no Stately Preassure de Tuolumne Meadows
Mas a aventura em Yosemite não fica por conta só da escalada. Pelo menos para nós, “mundrungos de terceiro mundo”. Nosso dia-a-dia também incluía a tarefa de escapar dos rangers, montando a barraca no lendário Camp IV depois do anoitecer e saindo antes de todo mundo acordar. Ou tomando deliciosos banhos quentes grátis e não-autorizados na área mais “turística” do parque. Era nosso jeito de escapar das taxas e da lotação do camping, que exigia reservas com antecedência. E antes que alguém pense “só podiam ser brasileiros”, vale dizer que essa é uma prática comum entre escaladores; alguns passam meses dormindo no frio em seus sacos de bivaque. Não que o clima seja insuportável, pelo contrário. Pelo menos na época em que estivemos lá, no final da primavera. Dá até para dizer que a temperatura esteve bem agradável, tirando uma noite ao lado do June Lake depois de uma belíssima nevasca, quando meu saco de dormir para -7 graus atingiu o seu limite.  
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The end of affair
Mas não quero desviar demais do motivo da viagem, que é abraçar pedras e coisas afins. Apesar de Yosemite ser invadida diariamente por hordas de aposentados, estudantes em férias, trekkers japoneses e casais em lua-de-mel, acho que ela só revela a sua “impressionância” toda, com o perdão da língua portuguesa, para quem chega lá armado de sapatilhas e mosquetões. O que vale tanto para os “locais” mais experientes, que fazem mágica nas menores fissuras até deslumbrados como eu que estão lá pela primeira vez. Vai ser difícil esquecer de vias clássicas na Cathedral, no El Cap, em Swam Slab, Five Open Books. Da Nutcracker, pela variedade de estilos nas suas 5 enfiadas. De Stately Pressure, em Tuolumne Meadows, pelo visual alucinante. E de tantos outros lugares que eu não conseguiria descrever, com texto ou com fotos. Aliás, espero não esquecer mesmo destes lugares. Porque a gente já sai de Yosemite com uma vontade doida de voltar lá. E se a memória começar a apagar alguma coisa, é sinal que já passou da hora de fazer tudo de novo.

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Eliseu Frechou

Eliseu Frechou

Guia de montanha e instrutor de escalada. Iniciou no esporte em 1983 e desde então se dedica ao montanhismo e à escalada tempo integral atuando em diversos segmentos, mas principalmente na organização de expedições, produção de documentários e filmes.


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