Pedra Riscada – escalando rápido na grande parede
Pedra Riscada, em São José do Divino é considerada a maior parede rochosa do Brasil, e atualmente conta com 17 rotas e variantes para atingir seu imenso topo.
As rotas tem variados estilos, graus e níveis de comprometimento. Eu já havia escalado a Bodífera Ilha, considerada a via “Normal” da Riscada, três vezes, todas bivacando no platô onde há água e um bom local para pernoite. Em uma das vezes em que estive lá, com o Michel Abdelnur, escrevi um artigo e filmei para o programa Planeta EXPN do canal ESPN-Brasil: https://eliseufrechou.com.br/pedrariscada/. A filmagem é antiga, mas fora eu e o Michel que estamos mais velhos, pouca coisa mudou na via, e serve para orientação de quem vai pela primeira vez.
A Riscada é uma montanha imensa. É difícil imaginar uma imagem 3D dela. São muitos braços, vales, arestas, e até topos falsos. Assim, para escalar rotas como a Bodífera Ilha, é importante ter um acurado route finding, ou a pessoa irá se perder nos platôs e gastar um tempo precioso até encontrar o caminho. Já em outras como o Moonwalker, a linha é mais reta e dificilmente o guia não avistará a próxima proteção, ou o caminho mais óbvio a seguir.
MOONWALKER
Após um bom planejamento e preparo para, em tempos de COVID, sermos o mais autossuficientes possível, Ana e eu resolvemos escalar a Moonwalker, na face oeste da montanha. Esta rota faz parte do livro 50 Vias Clássicas no Brasil, de Cintia e Flávio Daflon. No livro há toda informação necessária – e detalhada- para chegar na base e escalar a rota de forma a não ter problemas de navegação, mesmo pelo que, a rota segue uma linha bastante óbvia e é bem protegida.
Para seguir nosso plano de não depender da cidade, hotéis, restaurantes… transformamos nossa Dobló numa casinha onde saíram os bancos de trás e entrou um colchão, levamos toda a água (40l) suficientes para 5 dias e comida de sobra. Nessa parte tivemos muito êxito. Paramos pouquíssimas vezes na estrada para abastecer, e em São José do Divino, conversamos apenas com o proprietário das terras e ainda assim, de longe. O entorno da montanha é bem deserto e com pouquíssimas casas com moradores. Então se você tem o desejo de ir para lá, é só se organizar e ser disciplinado e o isolamento estará garantido, com a certeza de que você cruzará com menos pessoas na viagem inteira, do que você cruzaria numa simples ida ao supermercado. Quando fui com o Rogério, uma semana depois, não cruzamos com nenhuma alma viva.
Durante a viagem de 850km desde São Bento do Sapucaí, onde o trânsito lento após Belo Horizonte nos proporcionou 14 desagradáveis horas dentro do carro, não havíamos decidido ainda qual seria a estratégia da escalada, e nesse tempo, fomos conjecturando sobre as vantagens e desvantagens de fazer a rota em um ou dois dias.
Velhacos, levamos duas cordas a mais do que as duas necessárias para rapelar a rota, para fixar as 4 primeiras enfiadas, e assim tentar a via em um dia. Acabamos optando por esta tentativa, pois a ideia de puxarmos água para 2 dias, mais equipamento para bivacar parede acima era bem pouco atraente.
Mas vamos deixar bem claro que a ideia, apesar de escalar essa montanha em um dia ser uma tarefa na qual não se pode perder muito tempo, não era a de tentar bater nenhum recorde, nem transformar a escalada numa corrida maluca, e muito menos perder a oportunidade de curtir o visual. Tudo isso, se feito durante a luz do dia, seria um fechamento com chave de ouro. Lógico que rolas de escalar mais rápido, mais leve, e sem fixar as cordas, rapelando no escuro… mas com certeza o custo-benefício será outro.
Após um pernoite no carro, 50km antes São José do Divino, chegamos no meio da manhã na fazenda ao sopé da face oeste. Falamos com o Sr. Silvério, dono das terras abaixo da via, e ele nos permitiu acamparmos próximos ao curral no início da trilha.
Neste dia subimos pra conhecer o caminho, encontramos a base, fixamos as 4 cordas e descemos para nossa Botinha, digo, Dobló.
Noite estrelada, friozinho, tudo perfeito. Acordamos as 3 da manhã, tomamos café, subimos a trilha e as 04h50 estávamos jumareando as cordas. Assim que amanheceu, já estávamos na quarta parada.
A via segue por infinitas canaletas, com proteções as vezes próximas, as vezes bem espaçadas. Essa exposição vai aumentando a medida que se sobe. As primeiras enfiadas tem 6-9 costuras, Já a 9ª e 10ª tem apenas 4, assim como algumas mais acima. O grau de dificuldade é baixo, apenas tome cuidado para não cair por conta de um pé que escorregue na parte de dentro das canaletas, onde a água corre e é bem liso, ou pela quebra de alguma agarra.
No mais, a via é só curtição, pois não ter que carregar peso é um bom incentivo para escalar rápido. Chegamos no platô de Bivaque, na 13ª parada antes de 11h00. O platô é grande, tem sombra, mas não tem água. Comemos, tomamos uma Coca-cola (luxo!) e partimos para o trecho final.
Após o platô, a via muda de característica. Acabam as canaletas e começam as faces de micro-agarras. A rocha nas primeiras enfiadas não é muito boa, com alguns cristais quebradiços e chapeletas distantes e as vezes escondidas. Nessa hora o sol nos alcançou e tornou mais difícil achar as chapeletas, tanto que perdi a última da 15a. enfiada, o que deu uma adrenada até chegar na parada.
Após a 16ª enfiada, os cristais crescem e a escalada fica mais legal. O crux é bem de boa, quinto superior clássico, com agarras grandes e bem protegido. Ao chegarmos na 18ª enfiada, resolvemos voltar, pois ao acessar o mato que dá aceso ao topo, teríamos que rapelar em uma única chapeleta (nem f*d*nd*!). O topo da Riscada é uma mata enorme, onde não se tem grande vista, e em nenhum ponto há uma visão de 360°, então demos a escalada como finalizada e retornamos desta parada dupla.
Alguma boa alma equipou a rota com malhas rápidas, o que facilitou o rapel em muito, pois as chapas originais tem apenas argolas simples, o que torce a corda. Antes das 14h00 estávamos de novo no platô de Bivaque e pisamos no chão sem nenhum inconveniente, nas últimas luzes do dia.
Foi uma escalada espetacular, onde Ana e eu nos revezamos nas guiadas e no carregamento da mochila (tarefa do segundo, pois o guia escala mais rápido sem mochila) o que ajudou na fluidez e permitiu os dois curtirem as emoções da ponta da corda. Descemos a trilha com headlamp e no dia seguinte, antes das 07h00 já estávamos na estrada, a caminho da casa.
Equipamentos e estratégia
O livro 50 Vias Clássicas no Brasil https://companhiadaescalada.com.br/produto/50-vias-classicas-no-brasil/ tem diversas dicas valiosas, e um excelente croqui, assim como no site do Naoki Arima https://naokiarima.com.br/moonwalker-pedra-riscada/
Levamos 2 cordas para cima. A de guiar tinha 10mm e 70m e a que seria usada como par dela nos rapéis, uma corda de 7,5mm com 60m. Essa dupla foi bem escolhida, pois em muitos enfiadas (a 3ª enfiada é uma delas) a corda chega no talo, e se tivéssemos apenas cordas de 60m, acho que teríamos dificuldade para alcançar algumas paradas.
Como disse acima, levamos apenas 1 mochila, a qual foi carregada pelo segundo. Levamos 1,5l de água per capita, lanche, agasalho, headlamp e kit de primeiros socorros. Tudo numa mochila Deuter modelo Speed lite de 32l
Costuras levamos 12, quase todas com fitas grandes, sobrou e poderiam ser apenas 10. Mais algumas poucas fitas e mosquetões para as paradas.
BODÍFERA ILHA
Menos de uma semana após voltar da Moonwalker, o Rogério Jorge quis repetir a Bodífera Ilha. Legal! Uma via completamente diferente da outra. Estilos diferentes mas estratégia semelhante para realizar a escalada em 1 dia. Como a previsão do tempo mudou repentinamente no dia da partida, a ideia era de também darmos um bate-e-volta de 3 dias: estrada, escalada, estrada. Ufa! Esquema autossuficiente novamente, desta vez sequer cruzamos com os locais. Acampamos no quintal de uma casa abandonada, ao lado de um rio que cruza a estrada, 300m antes do curral que é o ponto de início da trilha. Trilha? Não, berçário de carrapatos. Este pasto é historicamente infestado de carrapatos. Todas as vezes que escalei essa rota, fui sugado por esses miseráveis. Numa das ocasiões, beirando o desespero, cheguei a passar inseticida no corpo. Ainda bem que fui eu o único a permanecer vivo.
Iniciamos a caminhada de aproximação as 05h30, ainda com a luz da lua. Enrolamos lonas nas pernas para diminuir a infestação de carrapatos e seguimos corajosamente ribanceira acima, enfrentendo as unhas de gato e demais espinhosas. Assim que acaba o pasto e chegamos na mata de capoeira, a visão fica prejudicada, não há trilha muito definida, e o jeito é seguir o instinto. Mais de uma hora depois, suados e bastante arranhados, além de queimados por urtigas, alcançamos a base da via.
A primeira enfiada tem uma chapeleta e depois segue ligeiramente a direita, em direção a uma moita de cactos. A parada está logo acima, e desta base dá para rapelar 30m até o chão.
A segunda enfiada começa a direita da parada, segue uma canaleta com três proteções, eu costuro numa pequena árvore com uma fita grande e sigo para a esquerda, onde há uma outra parada dupla.
A terceira enfiada era um E5 das três primeiras vezes que a repeti. Medo! Pânico! Visão da morte! Promessas de nunca mais escalar. Vsup/VI grau sem proteção alguma. Há dois anos, Emerson “Lampião” Azeredo fez a caridade de instalar 3 chapas na metade inferior da enfiada, o que diminuiu a exposição para E4, na minha opinião. Ainda é bem desagradável guiar esta enfiada, mas está bem melhor do que a original. Na segunda vez que repeti a Bodífera, com a Fernanda Rocha e o Fernando “Capitão” Leal, o Eduardo “Ralf” Vianna havia nos permitido duplicar as paradas, então as chapeletas com corrente que hoje duplicam essas bases, ainda tem que ser equilizadas com as chapas originais sem argola, portanto carregue cordeletes de abandono. A parada está a 50m, ligeiramente a esquerda da canaleta a qual estão as chapeletas. Rapel com duas cordas até a P2.
A quarta parada não tem proteção, mas é fácil se a chegada no platô das árvores não estiver molhada. O rapel é montado nas árvores, e são 30m até a P3.
A partir daí, você pode guardar a sapatilha, pois até o platô de Bivaque, é só caminhada. É exposto, mas é caminhada.
Após a quarta parada, siga pelas rampas de capim para cima, reto. Assim que alcançar as primeiras arvorezinhas, comece a contorna-las pela direita, evitando entrar na florestinha. Nesse trecho, até o Bivaque, fomos colocando umas fitas de lycra laranja, e se os macacos e pássaros não as arrancarem, irão ajudar futuras ascensões. Também existem algumas fitas plásticas brancas e outras amarelas (minhas, da terceira ascensão) pelo caminho. Como o trecho é grande, as fitas estão espaçadas, então se você for repetir, leve algumas também e ajude a manter um caminho único.
Após um enorme bloco quadrado amarelo com 3m de altura, você terá que entrar na mata a esquerda, até alcançar a crista e aí, tentar achar a trilha que segue pela mata, passa uma parte mais íngreme com alguns blocos pequenos aflorando, continua pela mata mais uns 300m até o primeiro descampado rochoso. Siga com os abismos sempre a sua direita, evite ir para a esquerda. Após passar dois descampados rochosos, e mais uma pequena floresta, você estará no Bivaque. Há pedras e restos de fogueiras amontoados, e uma canaleta onde escorre água.
Após a canaleta que tem as cacimbas de água, o caminho segue em diagonal, pela vegetação rala de pequenos platôs e cactos. Quando você ver uma outra canaleta grande, é hora de se encordar. Colocar sapatilha ainda é opcional. Siga em diagonal, pelo caminha mais óbvio, até o segundo grupo de árvores. Nele, é melhor colocar as sapatilhas, pois os lances são de IV grau, há 3 proteções entre este e o próximo grupo de árvores, 70m a frente, o que fará que você e seu segurança tenham que escalar em simultâneo. Preste atenção no trecho, pois terá de desescalá-lo na volta.
No terceiro grupo de árvores, há uma canaleta com pequenos blocos e fendas seguindo para cima, essa é a reta da próxima enfiada, com um lance de Vsup, antes da parada. A enfiada seguinte é curta e sem proteção. Cuidado se o platôzinho acima estiver escorrendo água.
Deste platô, siga para a direita, até visualizar uma rampa em diagonal que dá entrada ao grande platô seguinte. Neste grande platô, você deve seguir em direção ao topo, que pode ser avistado daí. Mais duas enfiadas e você chega na floresta do cume. A primeira enfiada é por uma canaleta (50m). Esta última parada é em árvores, assim como o rapel. Certifique-se de descer ainda com luz o trecho em diagonal, para não se complicar.
Desta vez, o trecho que cruza para o grande platô estava escorrendo água, e descemos daí. É a segunda vez que eu pego essa parte molhada, e vai da sorte de cada um tentar escalar no molhado e se dar bem, ou mal. Pode ser bem ruim voltar desescalando este trecho e chance para um acidente, então pense bem se vale a pena, pois daí, a vista é praticamente igual ao do topo. Mesmo pelo que, se esse trecho estiver molhado, a enfiada final pode estar também, e ela é desprotegida.
Na volta, mesmo tendo deitado o mato e colocado as fitas, ainda nos perdemos algumas vezes. Rapelamos com luz, mas a noite nos pegou na caminhada final e chegamos ao carro no lusco-fusco. Belo rolê.
DICAS DE EQUIPAMENTOS
As dicas a seguir, não são um check list. São dicas específicas para facilitar a sua escolha se a estratégia for escalar qualquer dessas vias em apenas um dia.
MOCHILA – Levamos apenas uma mochila para cima. Optamos por uma Speed lite de 32l. Essa mochila de ataque tem barrigueira reduzida, é extrememente leve e coube tudo o que precisávamos para a escalada. A caminhada foi feita com um haul bag, que abandonamos na quarta parada com meio litro de água para tomarmos na volta. Como optamos por fixarmos as 4 primeiras enfiadas, além das cordas que usamos para subir e descer, levamos mais duas, então na subida do primeiro dia e na volta, foi necessário uma mochila maior.
CORDAS – Aconselho a levar uma para guiar entre 9,5mm e 10mm com 70m e outra mais fina para recuperar a principal nos rapéis. Para a Bodífera Ilha, a corda principal pode ser de 60m. Nossa corda fina é uma Simond Rappel de 7,5mm e 60m. Nas enfiadas fáceis, o guia para levá-la nas costas e assim diminuir o peso na mochila do segundo. Outra opção, são duas cordas finas usadas em dupla, mas essa opção é mais cara e pesada para o guia.
LUVAS – Essencial, pois há muitos cactos na Riscada e no rapel, os espinhos grudam nas cordas e furam as mãos.
SAPATILHA – Deixe sua sapatilha mega precisa e sensível em casa, ou você vai querer jgar ela parede abaixo e continuar de tênis, antes da metade da escalada. Nessas vias a ferramenta é outra. Você irá precisar de uma sapatilha confortável com sola de boa aderência e se possível com um pouco de estrutura para não destruir o dedão. Eu usei uma sapatilha Rock da Simond, que tem sola Vibram XS grip e ela fez o serviço. Ana usou uma Anasazi lace.
HEADLAMP – Desembale pilhas novas e se sua lanterna for com lâmpada de led, a duração de 8 horas são mais do que o suficiente para não precisar de pilhas sobresalentes.
COSTURAS – Leve 10, sendo 6-7 com fitas longas. Leve em consideração o peso dos mosquetões. Melhor levar água ou um lanchinho a mais do que ferragens.
PRIMEIROS SOCORROS – Leve só o que for precisar em uma emergência de parede.
ANORAQUE X CORTA-VENTO – Só entre nessas vias na certeza de tempo bom. As canaletas da Moonwalker podem ser mortais numa tempestade de verão. Com 100% de chance de tempo bom, deixe o volumoso anoraque no carro e carregue para cima apenas uma jaqueta corta vento e uma segunda pele para aguentar o vento.
CALÇA – Usamos calças jeans com stretch. Elas são extremamente robustas para aguentar os espinhos da trilha e protegem seu joelho dos cristais. Numa das idas à Bodífera, cheguei na base com uma calça de tecido sitético completamente destruída pelos espinhos.
CROQUI
SÃO JOSÉ DO DIVINO
Eliseu Frechou
Guia de montanha e instrutor de escalada. Iniciou no esporte em 1983 e desde então se dedica ao montanhismo e à escalada tempo integral atuando em diversos segmentos, mas principalmente na organização de expedições, produção de documentários e filmes.
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