Porteiras Fechadas
Artigo para a revista Go Outside, abril 2008
Por que administradores de points de escalada em rocha proibiram tal prática em suas propriedades ou passaram a cobrar taxas de entrada apenas de escaladores? O montanhista paulista ELISEU FRECHOU diz que é um problema de má formação esportiva, postura e falta de educação e, algumas vezes, autoritarismo
HÁ NÃO MUITO TEMPO, a limitação de acesso às áreas de escalada, particulares ou públicas, só se dava por questões políticas ou religiosas. Mas, nos últimos 20 anos, surgiram outros empecilhos contra as porteiras abertas. Alguns foram criados por pessoas que legislam temas que não dominam ou administram locais que desconhecem. Outros impedimentos foram causados por problemas sociais, como assaltos a visitantes. E outros, infelizmente, estão sendo provocados por um inimigo camuflado: o próprio praticante do esporte. Proprietários têm colecionado as mais diversas reclamações de excursionistas desatenciosos, que jogam lixo no chão ou simplesmente não fecham uma porteira depois de passar por ela. Alguns donos de propriedades incomodados partiram para ações, como a cobrança de taxas de entrada. Outros preferiram medidas mais drásticas, como o fechamento definitivo dos points, acabando de vez com a bagunça em seus quintais.
Foi o que aconteceu na pedra do Guaraiúva, em Joanópolis (SP). O proprietário, notando o grande número de escaladores que freqüentava suas terras, achou por direito cobrar uma entrada deles. Depois, cansado de ser questionado a respeito, fechou definitivamente a porteira em novembro de 2007. Outro local em perigo é a pedra da Divisa. Com mais de 50 vias, é o principal point de escalada de São Paulo depois da pedra do Baú. Lá estão sendo estudadas ações para diminuir a visitação, conscientizar e educar os freqüentadores. Outras importantes falésias paulistas também correm riscos de terem acesso restringido e somente o trabalho e paciência de pessoas engajadas têm mantido esses lugares abertos.
Certas ações negativas talvez sejam resultantes do fato de que cada vez mais pessoas despreparadas, por maus cursos ou má formação familiar, são iniciadas na escalada e em outras atividades esportivas e acabam extrapolando os limites da educação, das propriedades e da convivência em grupo, em prol de uma visão egoísta, que busca o conforto próprio, com conseqüências desastrosas para as comunidades destes esportes. Países mais desenvolvidos, como Estados Unidos, França e Inglaterra, têm entidades que cuidam de problemas específicos de acesso dos esportistas. A norte-americana Access Fund (accessfund.org), exemplo de atuação para outras entidades, foi criada em 1991 com o intuito de manter um bom relacionamento entre escaladores, proprietários e administradores de terras públicas, divulgando eficientes regras de mínimo impacto aos iniciantes. Hoje a Access representa mais de 1,6 milhão de escaladores norte-americanos, chegando a ter força econômica para comprar terras onde as negociações se esgotaram. Mas esse ainda é um panorama distante da realidade tupiniquim. Aqui, os locais fechados estarão perdidos por prazo indeterminado.
ASSIM COMO EM OUTROS ESPORTES, na escalada há distintas facções de atletas, que às vezes parecem não praticar a mesma atividade. Uma parte desses problemas de mau comportamento é atribuída a pessoas que só praticam a escalada esportiva. Elas têm a tendência de se comportar como se estivessem num ginásio de escalada, gritando, ouvindo música em volume alto, levando cães para o agreste, usando o mato como banheiro, deixando lixo e porteiras abertas, como se alguém fosse limpar tudo para o dia seguinte. A verdade é que essa limpeza demora a acontecer e, quando ocorre, em 90% dos casos são ações dos clubes de montanhismo, que limpam as trilhas, cuidam das erosões e fazem manutenção das rotas de escalada. Mas também existem montanhistas incapazes de cavar um simples buraco para enterrar seus dejetos. Ou seja, não são as modalidades e sim as pessoas responsáveis pelos danos. Há atitudes certas e erradas tanto dos escaladores de ginásios como dos montanhistas.
Outra coisa é que a motivação dos praticantes e a evolução do esporte dependem da abertura de novas rotas e da manutenção das já existentes. E assim como o suprimento de pedras, falésias e montanhas é finito, a ação negativa de desportistas também causa desestímulo naqueles poucos que abrem rotas. Uma via de escalada dificilmente é aberta em apenas um dia. Um novo point pode demandar anos ou décadas de trabalho e investimento em equipamentos, que ficarão fixos à rocha, à disposição dos que desejarem usufruir daquele pedaço de pedra. Mas, nem sempre o esmero das pessoas que abrem as rotas é compartilhado por quem vem depois.
E, além do mais, não existe lugar neste esquadrinhado planeta que não tenha dono. Por isso, nós, esportistas, temos necessariamente que adentrar em espaços que não nos pertencem para poder praticar nossas atividades. E nunca conseguiremos comprar todos os lugares que nos interessam. Na maior parte das vezes, a permissão nos é concedida por simpatia. E, na maioria dos casos, para mantermos a porta aberta são necessários apenas educação e respeito, o que nem sempre acontece.
O preocupante é que restrição de uso não é um problema apenas nas propriedades particulares. Áreas como parques estaduais e nacionais, que por direito deveriam ser para o lazer de todos, sofrem intervenções autoritárias de administradores despreparados para lidar com o esporte-turismo. Eles vetam tudo o que não conhecem ou ao menor indício de que algo está fora do controle. Outros fecham áreas antes mesmo destes problemas acontecerem. Entidades representativas da escalada e do montanhismo, como a Confederação Brasileira de Montanhismo e Escalada (cbme.org.br), têm agido até onde podem, criando programas como o Adote uma Montanha, no qual clubes cuidam de áreas de interesse, minimizando os impactos nas trilhas. Já a Federação de Montanhismo do Estado do Rio de Janeiro (femerj.org) tem o programa de Acesso às Montanhas, semelhante ao Access Fund norte-americano, que tem trazido importantes resultados para o estado. A federação carioca tem sido a interlocutora dos montanhistas principalmente junto aos parques nacionais. “Infelizmente, parece que muitos locais de escalada estão sendo freqüentados por pessoas sem conhecimento de regras básicas de convivência e sem noções mínimas de ética na escalada e de condutas de mínimo impacto na natureza”, disse o presidente da CBME e da Federação de Montanhismo do Estado de São Paulo (femesp.org), Silvério Nery, na mensagem de começo de ano. “O pior é que sobra para escaladores e montanhistas, que vêm enfrentando o fechamento de áreas ou o aumento de barreiras burocráticas para poder freqüentá-las. Creio que é hora de atacar o problema por todos os meios ao nosso alcance”, completa. Essa é uma posição muito correta, pois mostra que as entidades já detectaram o problema e estão tentando exterminá-lo.
No Rio Grande do Sul o principal problema é a segurança. “O estado possui locais com enorme potencial e vias abertas de boa qualidade, mas que têm a freqüência proibida ou restrita por falta de segurança e receio de assaltos”, explica Silvia Marcon, da Associação Gaúcha de Montanhismo (agmontanhismo.org). Próximo a Porto Alegre, o morro do Chapéu, um local com vias esportivas abertas nos anos 80, está hoje entregue à marginalidade. Mas Silvia diz que tem conseguido o engajamento da comunidade esportiva local para amenizar os problemas. Por exemplo, no município de Gravataí, Grande Porto Alegre, há o morro do Itacolomi, berço do montanhismo gaúcho e campoescola de muitos iniciantes. Além dos problemas socioculturais da região e da falta de policiamento, o Itacolomi está extremamente degradado. As trilhas transformaram-se em valas provocadas pela chuva e pela intervenção humana, como a erosão causada pelo motocross ou por trilhas abertas aleatoriamente. Lá, foram realizadas palestras para a divulgação do Manual de Mínimo Impacto em Ambientes Naturais do Pega Leve (pegaleve.org.br), além de distribuição de material escolar para a população local. Também foi feito um trabalho de contenção das trilhas, que já amenizou o problema, mas ainda vai levar um tempo até que seja possível observar uma recuperação significativa.
Já o estado de Minas Gerais é o que mais tem sofrido com fechamentos e intervenções de locais de escalada. Os mineiros são privilegiados por terem algumas das mais representativas paredes de calcário do Brasil. Essa rocha de incrível beleza natural favoreceu a abertura de rotas esportivas fantásticas, que seduziram e possibilitaram a iniciação de um grande número de praticantes no esporte, causando hoje um verdadeiro tráfego nas rotas mais visadas.
A situação em Minas foi agravada ainda por atitudes autoritárias, e muitas vezes incoerentes, de órgãos públicos. Lugares importantes, como a gruta da Lapinha e a gruta do Baú, estão fechados há anos, esperando que um plano de manejo seja estabelecido para a escalada. Todavia, tais lugares permanecem abertos para o turismo convencional, que também maltrata lugares que possuem formações sensíveis, como cavernas e grutas. No mínimo é uma lei nonsense.
O mesmo acontece em Conceição do Mato Adentro, um município a 200 quilômetros da capital mineira, que recentemente passou a cobrar dos escaladores pelo uso dos boulderes localizados no seu parque municipal. O problema é que a taxa não é cobrada de outros esportistas, como mountain bikers e praticantes de caminhada. A Associação Mineira de Escalada tem se mostrado atuante na questão. Quem acompanha, como eu, o trabalho dos voluntários dessa entidade tira o chapéu para o entusiasmo com que tais pessoas representam os interesses da comunidade. Mas o fato é que nem sempre os resultados são imediatos para quem deseja escalar o lugar num fim de semana, e manter um diálogo aberto com órgãos públicos nunca foi tarefa fácil.
Já na cidade de Pirenópolis (GO), Stéfano Braggio, um dos principais responsáveis pelo desenvolvimento do esporte por lá, prevê atritos num futuro bem próximo entre escaladores e administradores do Parque Estadual dos Pireneos, uma das mecas da escalada em boulder do Brasil. Segundo ele, o local está sendo transformado numa favela de barracas durante os fins de semana. Sabemos que a prática do camping é extremamente impactante se os parques não possuírem infra-estrutura básica, como banheiros e cozinha.
Mas mesmo não havendo regras escritas ou impostas, a verdade é que locais de escalada devem ser vistos como áreas de uso diurno. Em lugares como Divisa, Lapinha e Cipó não se deve acampar, pois o espaço reservado à fauna local é minúsculo. Na Divisa existe uma faixa de menos de 100 metros na sua base, com floresta secundária para quatis, esquilos, tucanos e veados. Manter escaladores lá até a noite é um abuso. Hoje, mais nenhuma das fontes de água existentes na travessia Petê-Terê (RJ) é potável e o parque do Itatiaia é muito mais extenso que esses points de escalada em questão. Ou seja, se há 20 anos era possível acampar por lá, hoje não é mais.
Estranho é que, tradicionalmente, montanhistas sempre formaram uma comunidade pró-ativa nas questões ambientais. Tanto que suas ações já denunciaram e impediram inúmeras atrocidades contra o ambiente das montanhas — como, por exemplo, a paralisação de extração de mármore nas portas do Parque Nacional da Serra do Cipó, em Minas. Desde cedo tais pessoas se deram conta de que precisavam manter o ambiente o mais natural possível para continuar a terem prazer em ir às montanhas.
Mas, se é assim, o que pode ter mudado nos últimos anos? O que está acontecendo?
A minha opinião é que estamos vivendo sob aquela lei da contabilidade, que diz que se há um crédito, haverá um débito noutra parte. Neste caso, o crédito é o crescimento dos esportes praticados ao ar livre, que aumentam num ritmo acelerado, movimentando mercados, gerando lucro para empresas, enchendo pousadas, criando um novo turismo de massa, que leva centenas de pessoas a cachoeiras e paredes rochosas para praticar rapel, sustenta megaginásios, gera cursos e prolifera pseudo-instrutores.
Assim, o que era um meio tornou-se um fim à medida que técnicas se transformaram em esportes — como o rapel — e conhecimento e responsabilidade para com o todo foram esquecidos. Na incessante busca pelo status de ser o melhor, criou-se uma competição velada na qual a ética foi deixada de lado em prol da técnica. O que era coletivo está passando a ser cada vez mais individualista. Há uma visão distorcida na qual a natureza passou a ser um objeto de consumo. E o débito de tudo isso é que locais antes inóspitos estão recebendo cada vez mais visitas e, se algumas atitudes não forem mudadas, isso ocasionará o fim dessas atividades da forma como as conhecemos hoje. Enfim, quanto mais invisíveis forem os escaladores e suas atividades, menos problemas ocorrerão. Essa constatação não é um aviso, é uma análise clara do que vem acontecendo e da trajetória que está sendo seguida.
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