Cima Grande de Lavaredo

Cima Grande de Lavaredo

Sabe aquela situação na qual as pessoas te perguntam sobre algo o qual você parece ter obrigação de ter feito? Então. Volta e meia alguém me questiona:

– Você já escalou nos Dolomitas?

– Não.

Comecei a achar que nunca não ter ido aos Dolomitas era uma falta gravíssima no meu currículo.

Há a alguns meses, tenho acompanhado por hashtags no Instagram, imagens destas montanhas, que na verdade são 5 grupos bem diferentes em relação às características da rocha e distantes umas das outras, em uma região bastante montanhosa do norte da Itália. A ideia foi se materializando na forma de viagem, quando o Rogério Jorge, amigo de Campinas com o qual já escalei o Mount Whitney e o The Incredible Hulk, topou a empreitada, que agendamos para início de setembro.

A rock trip começou em Chamonix, na França, e depois seguimos para a Itália, com o objetivo principal de escalar a Cima Grande das Tre Cime de Lavaredo. A máxima de que “já que vai, finaliza escalando a maior pra não ter de voltar”, foi o pensamento na hora de escolher a montanha, que á como o nome já diz, é a maior da cadeia.

As Tre Cime de Lavaredo. A Cima Grande é a do meio.

As Tre Cime de Lavaredo. A Cima Grande é a do meio.

Ao chegarmos na Itália, fomos direto para a região do Trentino, onde vivem os amigos Cesar Grosso e a Tati, e o Roni Andres, escaladores brasileiros que moram em Arco há muitos anos e conhecem tudo por lá. Nos hospedamos na casa do Stefano Carli e da Estela, em Vigo Lomaso, distante 40min de Arco, mas que vale muito a pena, tanto pela beleza cênica da região (mais alta do que Arco), quanto pela quantidade de falésias sem nenhum crowd, o que é difícil de encontrar nas falésias perto do lago de Garda. Não poderíamos ter dado tanta sorte no local de base.

Já no caminho de ida à Europa, comentei com o Cesinha e a Tati de que iríamos às Tre Cime, e eles toparam ir junto conosco, o que foi perfeito, pois eles conheciam as estradas, falam bem italiano e estar em grupo sempre dá mais segurança.

Reservamos as vagas no refúgio Auronzo, que não é o mais próximo das bases das vias, mas é o único no qual se chega de carro. Melhor caminhar sem cargueira.

Chegamos no refúgio no final da tarde, e já demos uma corrida para identificar o caminho até o início das vias, que teríamos que fazer no dia seguinte, ainda no escuro. O Rogério e eu, iríamos pelo Spigolo Dibona, a clássica das clássicas do lugar, e o Cesinha e a Tati iriam tentar Le Voci del Coro. A caminhada se mostrou bem tranquila, com menos de 1h de duração em trilha bem marcada.

O time da frente do abrigo do Clube Alpino Italiano

O time da frente do abrigo do Clube Alpino Italiano: Tati, Rogério, Cesinha e eu.

O abrigo é sensacional: camas confortáveis, restaurante bacana, banheiros limpos… dormimos bem e acordamos às 04h30, iniciando a caminhada antes das 05h30. Antes das 07h00 o Rogério já esticava a corda na primeira enfiada.

Eliseu Frechou

Bora pessoal!

Logo nos primeiros metros fomos constatando que o croqui da via é muito falho. A lista de equipamento é genérica, indicando apenas n.d.a. (normale-dotazione-alpinistica) que significa algo do tipo: leve martelo, uns pítons, um jogo de nuts e um de friends! E o traçado do croqui também é difícil de entender. A regra era nos mantermos perto da aresta, e assim seguimos por mais de 14 enfiadas (perdi a conta lá pela nona) em uma rocha calcária extremamente fraturada, na qual dificilmente encontrávamos fendas sólidas para colocações pra peças sequer pequenas. Como os blocos eram muito encaixados, o que mais usamos para proteção eram pitons já instalados na rota. Grampos? Nenhum na via inteira. Havia bases de rapel já montadas a cada 25m, muitas delas apenas um piton e um cordelete laçando um buraco no calcário e unidos por um pedaço de corda (medo!).

Ambiente dolomítico de altitude. Rocha fraturada e alguns blocos soltos

Ambiente dolomítico de altitude. Rocha fraturada e alguns blocos soltos.

 

Base padrão Dolomitas. Medo :|

Essa base deu pra melhorar com friends. Mas eu não iria querer rapelar nela.

 

Base padrão Dolomitas. Medo :|

Base padrão Dolomitas. Medo 😐

E assim fomos tocando, com paradas a cada duas bases de rapel, que foram na verdade, nossa melhor orientação durante o trajeto. O lance era sair na busca da próxima base. É um estilo bem diferente de tudo o que eu já tinha visto antes. E foi alí que eu entendi o do porquê de os italianos fabricarem tantos pitons. Se eu tivesse levado alguns, talvez os tivesse usado em alguma base. Por falar em equipamento, é normal as cordadas escalarem com 2 cordas de 50 ou 60 metros para facilitar os rapéis. Nós optamos por levarmos apenas uma corda de 60 metros e não tivemos problemas nem na via com a necessidade de usar corda dupla, nem nos rapeis de descida, pois as bases estão a menos de 25m uma das outras.

A Spigolo Dibona é uma via bem antiga, conquistada em 1909 e percorre por mais de 650m a aresta que fica de frente para a Cima Piccola. O grau varia entre o IV e IVsup, o que para quem está pela primeira vez escalando nessa rocha, é o limite da curtição. Se fosse um VI com as proteções ruins como são, e a rocha tão fraturada que não inspira confiança, a escalada seria bem tensa. Outro aspecto que merece ser citado, é que há muitos blocos soltos nos platôs. É necessária atenção redobrada para não soltá-los e atingir alguém mais embaixo. Há muitos relatos de acidentes devido a queda de pedras. A melhor dica para se prevenir nesse terreno, é chegar bem cedo e ser uma das primeiras cordadas a entrar na parede. Foi o que fizemos e não tivemos nenhum susto.

Rogério escalando rápido para chegar no sol.

Rogério escalando rápido para chegar no sol.

Como estávamos na zona de conforto, escalamos rápido, nos revezando nas guiadas e apesar das muitas dúvidas pelo caminho, antes das 12h00 chegamos ao topo. Até o lugar onde há uma cruz e o livro de cume, ainda tivemos que dar um rolê.

Lanche, assinatura do livro, selfies e depois de quase 2 horas vagando pelo topo, descemos pela via Normal, que tem diversos trechos intercalados de caminhada e escalada de III e IV, os quais rapelamos. Acho que fizemos uns 10 rapeis em bases de grampos muito novos, durante a descida dos 700m, que demorou mais duas horas e meia.

Topo!

Topo!

Na descida, notamos que apesar de ter trechos de caminhada, a via Normal também não é tão fácil quanto o grau III do croqui sugere. Primeiro que a escala inexiste no desenho. É essencial um bom entendimento e senso de orientação, ou você irá se perder bastante e demorar muito mais do que as 3 horas sugeridas para ascensão. A rocha é polida, e há muito mais blocos soltos. Se você pretende ir escalá-la, vista as sapatilhas da humildade. Use sim sapatilha para os lances de escalada fáceis pois as vezes eles são desprotegidos, capacete, jogo de friends e corda de 60m.

Terrenos fácil, mas instável.

Terreno fácil, mas instável.

Eliseu Frechou

Eliseu Frechou

Guia de montanha e instrutor de escalada. Iniciou no esporte em 1983 e desde então se dedica ao montanhismo e à escalada tempo integral atuando em diversos segmentos, mas principalmente na organização de expedições, produção de documentários e filmes.


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