Identificação, dogmas e haters

by Eliseu Frechou | 22 de abril de 2021 14:25

Ana Chata, Conjunto Pedra do Baú, meio dos anos 2000. Leonardo e seu amigo chegam na base da montanha e Leonardo, ao abrir a mochila, se deu conta de que deixou seu exemplar do Manual de Escaladas na pousada em que estavam hospedados. Mas ele havia feito a via Peter Pan alguns meses atrás e considerou-se apto para repeti-la sem o croqui. Só que ao invés de escalar na Peter Pan, Leonardo entrou na via ao lado, a Cidade Deserta que mesmo sendo do mesmo grau, é bem mais exposta e exige equipamento móvel. À duras penas, Leonardo chegou na primeira base e por não ter uma corda grande o suficiente para rapelar (nessa época muita gente ainda escalava com cordas de 40 ou 45m), decidiu continuar. Ainda perdido e mais enrascado, pois a segunda enfiada da Cidade Deserta tem apenas uma proteção fixa (no mesmo trecho a Peter Pan tem 5), Leonardo foi seguindo o traçado que lhe pareceu mais óbvio, visualizou umas chapeletas e seguiu em direção a elas. As chapeletas eram da via Justiceiro, mais à esquerda ainda, só que Leonardo no meio do caminho viu um sistema de fendas e como tinha 4 friends seguiu até elas, montou uma base com apenas dois friends e fez segurança a seu amigo. Alí, no meio de via nenhuma, o amigo sugeriu que eles descessem abandonando os friends e alcançassem uma base dupla da Justiceiro que era visível dali. Leonardo não quis abandonar as peças e achou que dali pra frente o terreno era fácil e ele chegaria a Cresta da Ana Chata rapidamente. Só que quem conhece essa faixa central da Ana Chata sabe que não é assim. Leonardo começou a guiar, não conseguiu colocar nenhuma proteção e a 15m da base, por algum motivo, caiu. A queda foi de fator 2, o amigo segurou a corda, um dos friends colapsou no impacto e o segundo só não foi arrancado também porque a corda de Leonardo entrou em uma laca que a travou a ponto de desfiar a capa, servindo como freio. Leonardo faleceu decorrente de traumatismo craniano, apesar de estar de capacete. Fiz o resgate do amigo em estado de choque e do corpo, junto com o Maurício, Sargento Marco Antônio, Sundara e João Alberto. Os relatos do acontecido estão registrados no Boletim de Ocorrência resultante da investigação do caso.

O óbito de Leonardo foi o primeiro fatal, que me lembro, causado por um erro no qual a identificação pudesse evitar.

 

Dogmas

Dogma é qualquer doutrina (filosófica, política, religiosa, esportiva…) de caráter indiscutível. Nascemos ouvindo verdades indiscutíveis. “Não porque não” dizem os doutrinadores. Até que a pessoa cresce e começa a se perguntar do porque de ter que comer quiabo, ter que vestir aquela roupa, ter que ter uma ou outra atitude que não gosta. Em geral os dogmas funcionam muito melhor quando incutidos em pessoas que não gostam de pensar, “arranjar confusão” ou estão confortáveis com a situação ou se beneficiam dela. Também de maneira geral, os dogmas começam a ser combatidos assim que a criança começa a questionar e argumentar. “Não porque não, não é resposta” dizia Marcelo Taz num quadro do programa infantil Castelo Rátimbum.

Porém, a quebra de dogmas é essencial para a evolução da humanidade.

Sinalizar vias de escalada é um dogma ultrapassado pela primeira vez, décadas atrás, nos setores esportivos da Europa. No Brasil, de forma tímida, algumas ações já estão sendo colocadas em prática, então há a necessidade de conversarmos a respeito, por que é essencial sinalizar.

 

A identificação e os haters

Semana passada iniciamos uma discussão e movimentação, chamando os principais conquistadores e equipadores ativos de vias do Brasil, para que possamos melhorar a experiência das pessoas nas falésias em relação à sinalização para que os visitantes não fiquem com a terrível sensação de “aonde eu estou?” quando chegam pela primeira vez num lugar, como não se metam em roubadas ou acidentes.

Lógico que ninguém imaginava ser esta uma tarefa simples. E nem que teria uma solução do agrado geral, mas de minha parte também não imaginaria uma oposição tão despreparada e sem argumentação inteligente.

Os principais comentários foram:

Eu não gostei” – uma pessoa adulta, já deveria ter entendido que o mundo não gira em torno do que ela gosta. Sabe a primeira lei patagônica “deu a ideia, faça”? Pois então, não dá pra pessoa não gostar de algo, e exigir que a outra resolva de graça a questão de uma forma que ela esteja de acordo. Aqui ainda há outro ponto importante: estamos sugerindo que a sinalização seja colocada pelos respectivos conquistadores e equipadores das vias, de forma legítima. Então, se a via não é da pessoa, ela sequer tem que dar pitaco, o autor da via decide, e pronto.

Assim a evolução da e$calada tá garantida. Pela $egurança de todos” – não entendi como alguém possa tirar algum proveito financeiro ao sinalizar uma falésia. Perguntei e não obtive resposta.

Prefiro me adaptar ao meio do que adaptar o meio a mim” – comentário hipócrita de quem quer dar lição de moral sem olhar para as atitudes próprias. Como dizia minha avó: “fala do rabo feio do outro, mas senta em cima do próprio pra esconder a feiura” Seguindo o raciocínio dessa pessoa, imagino que ela more numa caverna, não use carro, plante ou colha tudo o que come e levite pelas paredes sem derrubar vegetação, quebrar agarras, sem magnésio ou grampos. Realmente um ser superior.

Logo vamos por plaquinha nos boulders.. no crux da via… umas câmeras no setor, eu que não sou escalador também posso rabiscar meu nome bem grande na pedra.” – comentário digno do Cavaleiro do Apocalipse, querendo montar um cenário catastrófico imaginário, espalhando o pânico e assim finalizar a discussão.

Eliseu era um bigwalista… agora é um prezepeiro, está fazendo cagad@” – esse aí postou um vídeo queimando uma foto minha. Chorei de rir. Lembrei dos inquisitores queimando bruxas, gente desequilibrada. Amigo, arranje outro super-herói. E deixe de me seguir se não consegue repensar a escalada, não suporta ou aceita opiniões contrárias, não tem QI suficiente para argumentar de forma adulta e construtiva. Enquanto tiver forças, vou confrontar situações que eu considerar injustas e lutar para incentivar práticas corretas que favorecem o coletivo e tornem o montanhismo e a escalada mais inclusiva. Já briguei por que em 1990 achavam que eu não tinha o direito de conquistar a parede norte do Bauzinho; porque eu resolvi ser profissional num esporte que deveria se manter amador; porque brasileiros não podiam fazer a segunda repetição de um A5 no El Capitan; porque eu usava parabolts ao invés de P; porque eu colava agarras soltas na falésia dos Olhos, e é por conta dessa técnica que um dos points mais alucinantes da escalada esportiva brasileira existe hoje… e por aí vai. Enfrentar ideias atrasadas faz parte da minha personalidade. Estou com 53 anos e transito com naturalidade dos boulders às grandes paredes. Sento-me nas falésias para conversar com jovens mais novos que meus filhos e aprendo com eles. Vivo de ensinar, pois sou aberto a aprender.

Blasfêmia” – Oi? Ri de novo e lembrei da foto queimada.

Se alguém não sabe se orientar e precisa de plaquinha, nem deveria estar lá” –  sabe o efeito Dunning-Kruger? Explico abaixo.

 

Os haters e o efeito Dunning-Kruger

O efeito Dunning-Kruger é um viés cognitivo no qual as pessoas superestimam erroneamente seu conhecimento ou habilidade em uma área específica. Isso tende a ocorrer porque a falta de autoconsciência os impede de avaliar com precisão suas próprias habilidades. Sintetizando, gente que tem auto-estima elevada, e acha que os outros são inferiores. Na escalada, esse viés geralmente acontece quando a pessoa afetada está na sua zona de conforto, na falésia, na mesa de bar, atrás do computador, todo corajoso.

Em uma semana de discussão, nenhuma proposta prática foi apresentada pelos opositores à sinalização. O placar de 86% a favor da sinalização, versus 14% contra ficou estranho, pois a minoria sequer conseguiu argumentar seus pontos de vista com clareza e sem xingamentos. Só repetem dogmas ultrapassados. Bloqueei três pessoas por não terem a mínima maturidade emocional para discutirem o tema sem ofensas.

 

O problema não é que as pessoas tenham opinião. Isso é ótimo. O drama é que as pessoas tenham opiniões sem saber do que falam
José Saramago.

Numa rápida visita pelo perfil dos opositores à melhor sinalização, me pareceram pessoas que sequer frequentam o ambiente ao qual estamos falando: falésias com adensamento de vias ou lugares de difícil distinção de relevo. Elas só escalam um estilo e sempre numa área específica. Assim, estão falando e querendo impor regras em lugares que não conhecem, imaginando serem iguais a outros. A escalada é bem diversa, mas há pessoas que só a vêem sob uma ótica bastante restrita. Simplesmente imaginam um cenário, uma falésia, sem realmente a conhecerem e sentirem o problema do qual estamos tratando.

A maioria dos opositores da sinalização, teimam e insistem sistematicamente no tema “não queremos nas montanhas” Em nenhum momento falei em montanhas, apesar de o acidente do Leonardo mostrar que em alguns lugares seria muito importante. Mas não é tema neste momento.

Leia também o primeiro texto sobre o assunto: Sinalização de vias de escalada – Demandas e soluções[1]

Se tiver algum comentário, por favor deixe abaixo.

ATUALIZAÇÃO 11 DE NOVEMBRO 2021: https://eliseufrechou.com.br/identificacao-de-vias-orientacao-cbme/ [2]

Endnotes:
  1. Sinalização de vias de escalada – Demandas e soluções: https://eliseufrechou.com.br/sinalizacao-de-vias-de-escalada-demandas-e-solucoes/
  2. https://eliseufrechou.com.br/identificacao-de-vias-orientacao-cbme/ : https://eliseufrechou.com.br/identificacao-de-vias-orientacao-cbme/

Source URL: https://eliseufrechou.com.br/sinalizacao-dogmas-e-haters/